Springsteen: Salve-me do Desconhecido
Não é de hoje que temos conhecimento sobre algumas figuras emblemáticas do mundo da música que passavam por maus bocados, em suas vidas pessoais. Em especial, músicos atrelados ao bom e velho rock ‘n roll.
E, infelizmente, muitos desses simplesmente não conseguiram aceitar e lidar com a própria sombra que se encontrava dentro deles. Alguns exemplos bem conhecidos do público, como: Kurt Cobain ( Nirvana ), Chester Bennington ( Linkin Park ), Chris Cornell ( Soundgarden, Audioslave ), Ian Curtis ( Joy Division ), Jim Morrison ( The Doors ), Janis Joplin, Dee Dee Ramone ( Ramones ), Layne Staley ( Alice in Chains ), e tantos outros mais.
Springsteen: Salve-me do Desconhecido
Assim, é praticamente algum tipo de milagre que temos hoje, vivo (!), a lenda da música Bruce Springsteen, que tem uma pequena parte de sua história sendo contada em Springsteen: Salve-me do Desconhecido (2025), de Scott Cooper.
O longa-metragem baseado no livro Deliver Me from Nowhere , de Warren Zanes (2023), e em alguns elementos da autobiografia de Springsteen, Born to Run , narra as lutas pessoais e profissionais de Springsteen, durante a concepção de seu álbum Nebraska , de 1982.

Nebraska
Antes de adentrarmos na obra cinematográfica de Scott Cooper, torna-se necessário dissertar (um pouco) sobre o que significou o álbum Nebraska , dentro da extensa discografia de Bruce Springsteen.
Nebraska é o sexto álbum de estúdio do cantor e compositor americano Bruce Springsteen, lançado em 30 de setembro de 1982, pela Columbia Records . Springsteen gravou as músicas sozinho, usando um gravador de quatro canais no quarto de sua casa, em Colts Neck, Nova Jersey. Ele pretendia regravar as faixas com a E Street Band (sua banda de apoio), mas decidiu lançá-las como estavam, após considerar as versões com a banda, muito insatisfatórias. A fita demo continha dezessete canções, das quais dez foram usadas no álbum.
Vivendo isolado em Colts Neck, Springsteen foi influenciado pela música folk, literatura americana e pelo cinema, ao compor as letras. Os contos de Flannery O’Connor, em particular, o inspiraram a escrever sobre suas memórias de infância. O álbum apresenta um som cru, com faixas que narram histórias de trabalhadores braçais que tentam alcançar o sucesso na vida, mas fracassam em todas as tentativas, enquanto buscam uma redenção que nunca chega. Algumas letras são na voz de foras da lei e criminosos, incluindo o assassino Charles Starkweather, na faixa-título.
O álbum Nebraska se destacou estilisticamente dos demais lançamentos, de 1982. Springsteen não fez nenhuma promoção para o disco, acreditando que os ouvintes deveriam experimentá-lo por si mesmos. Os críticos elogiaram o álbum como corajoso e artisticamente ousado, considerando-o, até aquele momento, o trabalho mais pessoal dele. As críticas negativas apontaram que as músicas se fundiam estilisticamente e que seus temas sombrios agradariam apenas aos fãs mais fervorosos. O álbum figurou em diversas listas de melhores do ano.
Em retrospectiva, os críticos consideram Nebraska , um disco atemporal e uma das melhores obras de Bruce Springsteen. O álbum aparece em diversas listas de melhores álbuns de todos os tempos. É reconhecido como uma das primeiras gravações caseiras (faça você mesmo) de um grande artista e teve uma influência significativa no indie rock e cenas musicais do underground. Inúmeros artistas prestaram homenagem ao álbum e citaram seu impacto em suas próprias músicas, ao longo das décadas.

Springsteen: Salve-me do Desconhecido
Fica bem claro que para o próprio artista, Nebraska era mais do que algumas faixas em um álbum. Ali, percebia-se o coração, mente e alma de um músico, muito machucados e, necessitando de uma plataforma para que pudessem tornar-se expostos, sendo colocados em exibição, fora do próprio, para quem pudesse ver.
É nesse momento que devemos valorizar o roteiro e direção de Scott Cooper, uma vez que, não apenas nós como público, ficamos surpresos de ver o caos que habitava dentro da lenda musical, mas como o próprio Bruce Springsteen – vivido de forma sublime por Jeremy Allen White – mostrava-se naturalmente confuso com essas emoções que brotavam de dentro, machucando-o profundamente.
Existe uma probabilidade natural de que alguns assistam e sintam em Springsteen: Salve-me do Desconhecido, um algo mais frio, pois a narrativa guiada por Cooper, não conduz uma história com frequência de alcance de altos e baixos, de modo enérgico.
Na verdade, Scott Cooper buscou em seu melhor, que mergulhássemos juntos de Springsteen, em um ambiente que aparenta conforto, mas que na realidade ferve hostilidade. A calma e cuidado com que o cineasta filma a casa, e principalmente, o quarto de Bruce Springsteen, que representavam o berço e túmulo do álbum Nebraska , explica sem uso das palavras, tudo aquilo que necessitamos saber, mas sem entender, do que se passava nas partes interiores do ícone do rock.
O tal “conforto” do compositor enquanto escrevia e dedilhava em seu violão pelo piso, cadeira ou colchão da cama, eram a manifestação bela e selvagem de uma sombra que habitava dentro do próprio, mas que agora, do lado de fora, representam um outro residente dentro dos limites de um lar, morando e vivendo ali, junto do Springsteen, em Colts Neck, Nova Jersey.

Springsteen: Salve-me do Desconhecido
Outro ponto no alvo por parte do roteiro de Cooper, vem pela relação dele com Faye Romano – papel de Odessa Young – que representou um interesse romântico do compositor, no início da década de 1980. Logo, no primeiro encontro dos dois, do lado de fora de uma casa de shows, Faye não se acanha e já demonstra o seu interesse no protagonista da história, que claramente responde com uma defensiva, alegando que naquele momento estava saindo com uma pessoa, uma possível namorada.
Bruce Springsteen não mentiu quando disse para a jovem interessada que estava numa relação, só não podia dizer porque não compreendia, de maneira consciente, que no outro lado dessa relação, não se encontrava uma outra mulher, mas a depressão de toda uma vida, que veio acertar as contas, naquele momento de sua trajetória.
Havia um impedimento ali, onde ele machucava enquanto era machucado. A confusão emocional e mental do protagonista, expressada em sutilezas pelo talentoso Jeremy Allen White, é o que tornam Springsteen: Salve-me do Desconhecido, sim, um organismo vivo, de fluxo sanguíneo e de emoções e pensamentos, carregados de eletricidade lacerante, mesmo que de forma acústica, pelas cordas do violão da lenda do rock ‘n roll, o Chefe, Bruce Springsteen, que como qualquer mortal, é capaz de compreender a necessidade de se expressar, pelas artes e no divã.






